Temas y problemas de nuesTra américa

Temas y problemas de nuesTra américa

A saúde pública intermediada por organizações sociais:

arranjos e configurações

nas últimas duas décadas no Brasil

Salli Baggenstoss y Julio Cesar Donadone*

Resumo: Parte dos hospitais em São Paulo é administrada por entidades qualificadas: “Organizações Sociais de Saúde”. O objetivo deste artigo é compreender as mudanças ocorridas no espaço, configurações e oposição. Com abordagem qualitativa, a metodolo- gia envolveu pesquisa de campo e bibliográfica sobre as organizações, origem, divergên- cias e especificidades. Como resultado evidenciou-se quais são as organizações atuando na saúde e que sua escolha é individual do secretário de saúde. A oposição a tal arranjo

é composta por sanitaristas, conselhos e sindicatos, a busca por legitimação advém de eventos com autopromoção, discursos unívocos e publicações. A distribuição dos hospitais e do local de atuação das Organizações Sociais de Saúde revela a ocupação territorial na saúde do estado.

PalavRas-chave: Reconfiguração, Governo, Sociedade, Contratos de gestão, Intermediação.

abstRact: A part of the hospitals in São Paulo is management by organizations that re- ceive the qualification: “Social Organizations Health”. This article aims to understand the changes occurring in space, the configurations and opposition. Using a qualitative appro- ach, the methodology involved field research and bibliography on organizations, origin, divergences and specificities. As results it was evident that organizations previously were acting in health and this election is an individual choice of the Health’s Secretary, with the opposition consisting of sanitarians, councils and health‘s union, these arch for legitimacy comes from events with self-promotion, univocal speeches and publications. The distri- bution of hospitals in the regions reveals the territorial occupation in health of the State.

Keys woRds: Reconfiguration, Government, Society, Management Contract, Intermediation.

* Universidade Federal de São Carlos (salli@unemat-net.br),(donadojc@uol.com.br)

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apresentação

o promover mudanças na gestão governamental que buscavam parcerias com a sociedade, as autoridades federais promulga- ram em 1998 a Lei nº 9.637,1 intitulada como Lei das Organiza-
ções Sociais. Utilizar-se de organizações para intermediar a exe- cução de serviços que lhe são inerentes não se trata de novidade na saúde pública. Constata-se ser uma alternativa que é empreendida na iniciativa privada e também na pública, como uma evolução na gestão por meio de arranjos organizacionais. As parcerias entre Estado e sociedade reprodu- zem transformações sociais, políticas e econômicas e a descentralização promovida abre portas para a participação da sociedade na gestão estatal sob novas configurações.
Passaram-se aproximadamente 15 anos da publicação da Lei das os e a lei federal continua a ser replicada em leis estaduais e municipais com entidades qualificadas, exercendo atividades de interesse público Brasil afora, sugerindo isomorfismo nos entes federados. Por vezes, recebendo verbas públicas através de contratos de gestão para realizarem ações con- sideradas relevantes, se não de função do próprio governo. Os serviços prestados podem ser nas áreas da cultura e lazer, mas também na área da saúde (então como oss-Organizações Sociais de Saúde) e educação. As entidades optam por se qualificar como Organização Social junto ao governo, estando aptas a receberem parte do orçamento público.
Surge então o questionamento do que de fato modifica-se, altera-se, com a atuação de uma entidade qualificada no ambiente —lócus, o hos- pital— que o governo conduzia anteriormente. Um Contrato de Gestão e uma Organização Social no gerenciamento de um espaço de prestação de serviço público que seguia preceitos de administração pública: o que se altera com a intermediação? Para obter a resposta, tornam-se imperativo desvendar os desenhos, as configurações destas organizações. A interpre- tação assumida para estudo das configurações das oss envolve desenhar

1 Lei 9.637, de 15 de maio de 1998. Diário Oficial [da] República do Brasil, Brasília,

DF, 15 maio de 1998.

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a dinâmica que gerou o cenário e compreender que mudanças ocorreram
no espaço social considerado. Além disso, identificar os agentes e institui-
ções envolvidos, suas estratégias de ação, reconhecer quais as elites que se relacionam e como participaram das transformações (se ainda interfe- rem) são alguns dos propósitos.
O estudo tem o objetivo, portanto, de contribuir na compreensão do processo da estruturação organizacional deste espaço, compreendendo como tais organizações são formadas, quais são os agentes que as com- põem, as suas interações, em quais espaços atuam, seus principais interlo- cutores e resistências, entre outros.
Por meio da idéia de intermediários, a questão colocada pelo estudo visa contribuir, ampliar e enriquecer os debates em torno do papel do Estado na Saúde e as discussões sobre privatizações dos serviços públicos, processo presente no Brasil e na America Latina a partir dos anos 1990.
Justifica-se no entendimento das parcerias entre Estado e sociedade,
a interação e características desse espaço a ser estudado e suas contribui-
ções, como na avaliação das políticas públicas, em especial as direcionadas ao Terceiro Setor e à saúde —escopo da pesquisa. Ao justificar a pesquisa focalizar especialmente a área da saúde através de oss, incide por necessi- dade de delimitar um espaço a ser estudado, devido à amplitude das áreas de atuações das organizações. Apresenta-se ainda a relevância que a saúde possui como a “menina dos olhos” para o setor político e a mídia, e fonte de inquietações para a sociedade.
Na metodologia adotou-se abordagem qualitativa envolvendo pesquisa de campo e também pesquisa bibliográfica direcionada ao tema das organi- zações sociais, sua origem e emprego no Brasil, os questionamentos envol- vidos e movimentação contrária a sua utilização. Delimitou-se o estudo com foco nas oss do estado de São Paulo, por ser este um dos primeiros estados a implantar a lei e por sua representatividade no cenário nacional. Assim, foi especificada a lei em São Paulo e o Contrato de Gestão, principal ferramenta a disposição que detalha tipos e números de atendimentos, valores, indica- dores de qualidade, entre outros.

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A coleta de dados para pesquisa ocorreu com diversas técnicas. In- vestigações em endereços eletrônicos, jornais, revistas, livros, artigos. Entrevistas pessoalmente, por telefone e emails. Os autores também mantiveram contato via correspondências com todas as organizações re- lacionadas no Quadro 1 e seus respectivos hospitais. Destes, foram esta- belecidos alguns retornos por correspondência, por telefonemas e outros por emails. As principais fontes de informações advêm dos endereços ele- trônicos. Parte significativa das oss dispõe de sites onde procuram prestar informações e ostentar seus feitos.
O estudo foi realizado na perspectiva da sociologia econômica, uma forma díspar de analisar a economia. Além de observar o mercado, a so- ciologia econômica deve —e pode— se interessar por todas as formas de produção, consumo, distribuição e transferência de capitais.2 Neste ponto de vista na pesquisa, as observações são direcionadas aos hospitais ge- renciados por organizações sociais. Eles formam, ao final, o lócus de um embate de relações de interesses específicos entre atores de um espaço
- utilizando-se do conceito de “campo” de Pierre Bourdieu.3 Têm-se, neste espaço, os quatros indicativos do conceito de campo: interesses específi- cos, leis e regras de funcionamento, estrutura de luta, interesses comuns.4
Para entendermos como funciona o hospital gerenciado por uma oss, sua supervisão, gestão e força de trabalho, precisamos compreender como ocorreu o processo de estruturação, as forças atuantes, quem são os agentes envolvidos, entre outros. As transformações ocorridas com a lei das os indicam um processo de construção social do que seria um ‘novo’ espaço, e assim, ‘novas’ justificativas. Uma das caracterizações do capitalis- mo, para Boltanski e Chiapello,5 é a exigência de acumulação do capital,

2 Viviana Zelizer, “A economia do care”, em Civitas, vol. 10, núm. 3, Porto Alegre, Set.- Dez., 2010, pp. 376-391.

3 Pierre Bourdieu, La Noblesse d’État-grandes écolesetesprit de corps, París, Les Édi-

tions de Minuit, 2006 (Coleção Le senscommun).

4 Pierre Bourdieu, Les structures sociales de l’économie, París, seuil, 2000 (Collec-

tionLiber).

5 Luc Boltanski, Ève Chiapello, O novo espírito do capitalismo, São Paulo, Martins Fon-

tes, 2009.

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por meios formais e pacíficos, e o repor em jogo no círculo econômico com o objetivo de extrair lucro, dessa forma repetidamente. Para que a acumulação capitalista ocorra, conforme os autores, mesmo que em graus desiguais de acordo com o caminho do lucro pelo qual se segue, exigem- se a mobilização de inúmeras pessoas em que as chances de lucro são de- siguais. Contudo, a cada uma é atribuída uma responsabilidade ínfima no processo global. É necessário que os indivíduos acreditem e que estejam engajados no processo.
Insere-se no estudo o desenho da intermediação. Podemos encon- trá-la representada em publicações como de Donadone6 e Guimarães.7
Guimarães8 demonstra em seus estudos o papel do terceiro elemento na relação de força em que estariam o contratante e o contratado no merca- do de trabalho, que segundo a autora, se distribuem por várias linhas de tensão que podem ser mais bem representadas como convergindo para as extremidades da figura de um triângulo. Seria a intermediação quem “forja a dinâmica de um ‘novo’ mercado que se constitui no interior do próprio mercado de trabalho - o ‘mercado de intermediação das oportu- nidades de trabalho’”.
O papel de intermediação também é respaldado por estudos reali- zados por Donadone9 sobre as consultorias e o crescimento do setor. O papel intermediário do consultor na implantação de mudanças organiza- cionais foi gerado pelas reestruturações empresariais, onde a gerencia bu- rocrática passou a ser substituída pela ação em formato matricial das gran- des consultorias ou mesmo por ‘projetos’ de consultorias acadêmicas.
Com suporte no esboço citado, a sequência desta pesquisa oferece uma sinopse das temáticas centrais envolvidas no estudo das Organiza-
ções Sociais.

6 Julio Cesar Donadone, “A Apropriação e Recontextualização de Práticas Organiza-

cionais”, vol. 1, núm. 01, janeiro-junho de 2002.

7 Nadya Araujo Guimarães, “Empresariando o Trabalho: Os Agentes Econômicos da

Intermediação de Empregos, esses Ilustres Desconhecidos”, em dados, vol. 51, núm.

2, Río de Janeiro, 2008, pp. 275-311.

8 Loc. cit.

9 Donadone, op. cit.

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reconhecimento da dinâmica do estado e suas transformações
O dinamismo das organizações ocorre igualmente com o Estado, ade- quado as suas proporções, que na justificativa de prover e melhorar os benefícios sociais que lhe diz respeito redireciona suas estratégias de atu- ação. Entre as alterações, uma teve início com ações governamentais que possibilitaram o Estado a repassar parte de suas atividades exercidas às entidades privadas, nos processos de privatização e publicização.
O movimento de privatização alcançou notoriedade mundial com os governantes inglês e norte-americano na década de 80, usado como estratégia para alcançar as metas de melhorar o setor público, controlar e diminuir gastos e desregulamentar a economia daqueles países. Santos10 tipifica a privatização como a preocupação revelada do Estado em adaptar- se à modernidade, à gestão eficiente de atividades diante do fenômeno da globalização econômica. Com a privatização, a expectativa era liberar o governo de atuar em determinadas áreas e a captação de recursos para investimentos em áreas fundamentais como saúde e educação.
No Brasil, com a nomeação de Luiz Carlos Bresser Pereira como ti- tular do Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado (mare) em 1995 (governo de Fernando Henrique Cardoso), deu-se segmento ao movimento de alterações estatais nacional, a uma nova administração pú- blica. O objetivo era repassar tarefas e focar no gerenciamento, fator que sobrevinha à ideia de que a administração pública requer poucos funcio- nários, mas de alto nível para realização de tarefas estratégicas que a nação iria usufruir, como no setor da saúde.
Sendo o propositor da lei das os, Bresser Pereira11 as definiu como entidades sem fim lucrativo, públicas não estatais, financiadas pelo Estado

10 Enoque Ribeiro dos Santos, “As oscips (Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público) e a Administração Pública. Intermediação fraudulenta de mão-de-obra sob uma nova roupagem jurídica”, em Revista Nacional de Direito do Trabalho, vol. 109,

2007, pp. 11-28.

11 Luiz Carlos Bresser Pereira, “Os primeiros passos da reforma gerencial do Estado de

1995”, en Revista Eletrônica da Reforma do Estado – rere, núm. 16, Salvador, Instituto

Brasileiro de Direito Público, 2009.

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e por ele controladas através de contrato de gestão com fixação de indica- dores de desempenho. Dessa forma proporcionariam maior autonomia e flexibilidade das atividades não exclusivas do Estado, além de possibilitar uma operação mais eficiente, onde o Estado garante o controle sobre a qualidade e direcionamento dos serviços por meio do contrato de gestão e da auditoria por resultados.
A estratégia governamental de repassar serviços a outros setores en- volve também o conceito de descentralização. Das estratégias para des- centralização, Arretche12 destacou a desconcentração, a delegação, a trans- ferência de atribuições e a privatização ou desregulação. A delegação seria então a que acomodaria as organizações sociais, sendo a transferência da responsabilidade na gestão dos serviços para agências não vinculadas ao governo central, e mantido o controle dos recursos pelo governo central. Di Pietro13 inclui, na delegação, além da modalidade das Organizações So- ciais, os consórcios, a concessão, a terceirização, a permissão, entre ou- tros.
As parcerias do Estado com a sociedade, independente de formas e características, remata a necessidade de outros organismos interessados em fazê-lo. Poderia ser o setor privado ou então, o Terceiro Setor. Em seus estudos sobre o Terceiro Setor, Alves14 revela que o termo teve origem na literatura norte-americana para identificar o setor da sociedade em que atuam organizações sem fins lucrativos com objetivos de produção ou a distribuição de bens e serviços públicos. Não sendo consenso entre au- tores, houve variações de nomenclatura e mesmo conceitos envolvidos, de acordo com o pesquisador, passando por “setor não lucrativo”, “setor independente” ou então “setor voluntário”.
Há manifestações críticas sobre a descentralização. A publicização, assumida pelo governo por meio das organizações sociais, tinha como o intento de que atividades no setor de prestação de serviços não-exclusivos ganhariam em qualidade: haveria otimização mediante menor utilização

12 Loc. cit.

13 Maria Silvia Zanella Di Pietro, Direito Administrativo, 11ª ed., São Paulo, Atlas, 1999.

14 Mario Aquino Alves, Terceiro Setor: O Dialogismo Polêmico, São Paulo, 2002, p. 350.

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de recursos, com ênfase nos resultados, de forma mais flexível e orien- tados para o cliente-cidadão mediante controle social. Para Montaño,15 a retórica neoliberal argumentada com base na ‘escassez’, fruto de cri- se capitalista que gerava impossibilidade de “manutenção” da atividade providenciaria, e com base também na crise fiscal do Estado, gastando mais do que arrecada, justificaria a reforma do Estado com a passagem de atividades do setor estatal para o Terceiro Setor. O autor prossegue em críticas também à publicização, que seria a diminuição dos custos da atividade social, conseguida não pela maior eficiência das organizações que prestariam os serviços públicos, mas devido à precarização, focali- zação e localização destes serviços, com a perda das suas dimensões de universalidade, de não-contratualidade e de direito do cidadão, retirando a responsabilidade do capital.
Amélia Cohn16 questiona também uma série de posicionamentos, entre eles a descentralização, sobre a qual a autora alega que bloqueios e limites impostos restringem sua efetivação como processo democrati- zante. Nivaldo Carneiro Junior17 reforça que a estratégica descentralização tomou conteúdos e finalidades de acordo com o público alvo e com quem as programa nos contextos particulares das reformas (Estado e política).
O contraponto ao movimento estatal vem do anseio da sociedade em fazer parte da gestão pública, que também foi efetivada com a criação de Conselhos de Saúde (municipal, estadual e federal), como um dos prin- cipais legados do movimento sanitário brasileiro. Assim, onde o controle era do Estado, passaria a ser vigiado pela própria sociedade. Então surgiu o Movimento Sanitário, que se formou pelo conjunto de ideias que se tinha em relação às mudanças e transformações necessárias na área da saúde que não compreendiam apenas o sistema, mas todo o setor saúde.

15 Carlos Montaño, Terceiro Setor e questão social. Crítica ao padrão emergente de intervenção social, São Paulo, Cortez, 2002.

16 Amélia Cohn, “Descentralização, saúde e cidadania”, em Lua Nova, núm. 32, São

Paulo, abril de 1994, pp. 5-16.

17 Nivaldo Carneiro Junior, O setor público não-estatal: as organizações sociais como possibilidades e limites na gestão pública da saúde, Tese, Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo, 2002, 242 pp.

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O grupo não se compunha como partido, sendo considerada uma ação social e obteve conquistas com a Reforma Sanitária Brasileira, através da implantação do sus18 e outros objetivos estabelecidos na Constituição Na- cional. Ele seguiu e ainda hoje tem representantes por todo o país, vincu- lados a instituições como Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (cebes), Associação Brasileira de Saúde Coletiva (abrasco) e Associação Nacional do Ministério Público de Defesa da Saúde (ampasa). É certo que sua força se restringiu, em parte talvez por, como afirma Nivaldo Carneiro Junior,19 alguns de seus militantes passariam a fazer parte da gestão governamental.
Outra implicação envolvida com as os e que tem sido uma das prin- cipais bandeiras levantada por entidades contrárias é a considerada tercei- rização da saúde pública. A terceirização foi assumida por alguns agentes envolvidos no processo, como o ex-secretário de saúde paulista e sanita- rista José Guedes,20 ao afirmar “[...] em suma, trata-se de uma terceirização para entidades filantrópicas sem fins lucrativos que assinam um contrato que nos permite acompanhar seu desempenho”.
Para esclarecer, apresenta-se o entendimento oferecido pelo subpro- curador geral da República21 Wagner Gonçalves: os contratos ou convê- nios transferem uma unidade hospitalar pública a uma entidade civil sem fins lucrativos, sendo entregue o próprio estadual ou municipal, como bens móveis (máquinas e aparelhos hospitalares), recursos humanos e financeiros, em que são repassados autonomia de gerência para contra- tar, fazer compras sem licitação; concede a eles o verdadeiro mandato para gerenciamento, execução e prestação de serviços públicos de saúde. Assim, o entendimento é de terceirização dos serviços de saúde públi- cos. Em vários pontos de seu parecer, o subprocurador geral da República

18 Sistema Único da Saúde.

19 Carneiro Junior, op. cit.

20 José da Silva Guedes, “Oito anos construindo o sus no Estado de São Paulo”, em

Estudos Avançados, vol. 17, núm. 48, maio-agosto, 2003, p. 238.

21 Parecer de 1998 que embasou a Ação Direta de Inconstitucionalidade - adl 1923, contra a lei de Organizações Sociais, elaborado por Wagner Gonçalves, subprocurador geral da república e procurador federal dos direitos do cidadão – Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão/mpf, em 27/05/1998.

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menciona a terceirização da saúde pública ocorrendo através do repasse as oss dos serviços de saúde públicos.

especificações da lei nº 846 e do contrato de gestão

A Lei Complementar 84622 foi assinada pelo governador de São Paulo Má- rio Covas em 04 de junho de 1998, logo após a promulgação da lei federal. Para uma entidade ser qualificada como oss, a lei estadual estabelecia que fosse pessoa jurídica de direito privado, sem fins lucrativos e que tivesse atividades voltadas à saúde ou à cultura.
O controle das oss qualificadas fica, em responsabilidade externa, na Assembleia Legislativa e pelo Tribunal de Contas e, em responsabilidade interna, a cargo do poder executivo, representado então pela Secretaria de Estado da Saúde (ses). Também se define as condições para qualifica-
ção, entre elas comprovar o registro de sua constituição com objetivo de natureza social e finalidade não lucrativa, além de atuação anterior na área da saúde de cinco anos, no mínimo. É também determinado ter como ór- gãos de deliberação superior e de direção, um Conselho de Administração e uma Diretoria, definidos nos termos do Estatuto.
Os contratos de gestão se tornaram uma ferramenta de relevância no processo de parceria entre o governo e a organizações sociais. Por meio deste instrumento, são dadas as diretrizes em que as oss devem atuar. O documento formaliza a ação no local em que atua - o hospital. Estipula ainda valores a serem recebidos, quais são os atendimentos realizados e número de atendimentos, medidas de desempenho, etc. Ou seja, delimita quantitativamente as ações das oss nos hospitais.
Um Contrato de Gestão efetiva o alicerce da relação entre Estado e

oss. Todavia, a própria escolha da organização para gerenciar um hospital

—que é feita pessoalmente pelo Secretário de Saúde estadual ou munici-

22 Lei Complementar 846, de 04 de junho, em Diário Oficial do Estado de São Paulo,

vol. 108, núm.106, 5 de junho de 1998.

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pal, considerando o histórico da entidade junto à sociedade— subsidia um
‘contrato’ anterior sustentado nas relações pré-existentes.
A secretaria de saúde é a responsável pelo contrato, mas definiu-se uma instância específica para formulação, acompanhamento e monitora- mento que é a Coordenadoria de Gestão de Contratos de Serviços de Saúde (cgcss).
resultados e discussões
Os hospitais estaduais que abriram as portas depois de 1998, já o fizeram no modelo de gestão por intermediação das organizações sociais. Para entender o que ocorre dentro do hospital, foco desta pesquisa, é preciso compreender algumas movimentações que precedem a ação e determi- nam aspectos importantes aos quais serão submetidos.
O primeiro passo é a escolha da entidade. Para uma entidade que tem interesse em se tornar organização social e gerenciar um hospital é neces- sário cumprir com os requisitos da lei. No procedimento descrito por uma oss consta a necessidade de reformar o Estatuto Social para introdução do Conselho de Administração com membros da comunidade com ilibado desempenho ético e profissional, entre outros aspectos.23 Este relato legi- tima as informações dispostas na lei sobre a necessidade de qualificação como Organização Social e os trâmites para fazê-lo, inclusive revisão de estatuto e reestruturação (ou criação) do Conselho Administrativo.
Nasce do gabinete do secretário de saúde a resolução e indicação de publicação no Diário Oficial da Convocação Pública, momento em que informa a disponibilidade de uma unidade de saúde a ser gerida por uma entidade qualificada como organização social e convida as interessadas a manifestarem-se. Assinalada a intenção da oss em gerenciar o hospital, ela

23 Camilo Cruzada Bandeirante São, Assistência Médico Social, Relatório de Atividades Desenvolvidas: Hospital Geral de Carapicuíba, Superintendência, Versão núm. 25, março de 2012, p. 54.

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tem o prazo de cinco dias úteis para apresentar um ‘plano operacional’.
Ainda na convocação, apresenta-se um modelo do Contrato de Gestão.
O processo de seleção é crucial, pois a ‘escolhida’ será a responsável, nos próximos cinco anos, pela gestão do hospital determinado, decisão publicada em Diário Oficial. Dois aspectos são merecedores de atenção. Inicialmente, a decisão unilateral de escolha pelo Secretário de Saúde por determinada oss. Todavia é possível constatar que há um parecer emitido pela Coordenadoria de Gestão de Contratos de Serviços de Saúde (cgcss) que pode influenciar a escolha da oss. Outro aspecto para o qual se chama a atenção é a manifestação frequentemente de apenas uma oss pelo pleito do hospital. Foi constatado também na pesquisa de Carneiro Junior,24 ao indicar que “as oss eram levadas a se organizarem para negociar assuntos de seus interesses, assemelhando-se aos prestadores privados do sus”.
Questionou-se porque as entidades se qualificavam como oss. Uma das respostas obtidas foi: “as entidades são assediadas para serem oss. É interesse do governo que elas façam o gerenciamento dos hospitais”.25
Esta afirmação é avigorada pelo Padre Cherubim:26 “também em 2008, após numerosas investidas neste sentido por parte da Secretaria da Saúde do Estado de S. Paulo, preparei ofício a ser entregue a mesma”. Como observado, a escolha da oss não ocorre por interposição de licitação, pro- cedimento comum à administração pública. Os pretextos que a envolvem são muito mais subjetivos do que públicos.
Insere-se no processo de escolha uma coadjuvante com papel princi- pal. É a Coordenadoria de Gestão de Contratos de Serviços de Saúde (cg- css). O papel da coordenadoria é fundamental, também para suporte as decisões do secretário de saúde, especialmente pelas informações a que tem acesso. Parte das informações advém do Contrato de Gestão, o qual também é de responsabilidade da cgcss (elaboração, adequações, indica- dores, etc.). Outra parte chega por meio de um sistema de informações

24 Carneiro Junior, op. cit.

25 Entrevista de representante da Organização Social de Saúde, seconci, 2012.

26 Niversindo Antonio Cherubin, A saga de um administrador hospitalar, (Autobio- grafia), São Paulo, São Camilo, 2011, p. 484.

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no qual o hospital, diariamente, alimenta com dados sobre internações, cirurgias, procedimentos, consultas, etc., denominada Sistema de Infor- mações Hospitalares (sih). Ainda são supridos com os relatórios mensais, estes de cunho técnico. A coordenadoria também acompanha as compras e serviços a serem contratados, sendo que os regulamentos devem ser elaborados pelas oss e enviados para aprovação da mesma. É uma esfera a mais com interesse no espaço considerado neste estudo, o qual inter- fere e interpõe méritos, e do qual se evidenciam forças coadjuvantes dos agentes que nela atuam.
os contratos de gestão e a fiscalização
A ferramenta da qual o governo faz uso para definir os parâmetros de atuação da oss. A retrospectiva demonstra que, ao ser publicado o edital para convocação de organizações interessadas em gerenciar determinada unidade hospitalar, após sua aprovação, a mesma deve apresentar um pla- no operacional que será apreciado pela cgcss. Assim, passam a existir os números encontrados no Contrato de Gestão: consultas, atendimentos, cirurgias, etc. Destes números são estipulados os índices a serem alcan-
çados. Outros itens também são determinados nos contratos como os gastos com pessoal (salários e vantagens de qualquer natureza),27 forma de atendimento, informações a serem prestadas ao paciente e à coordena- doria, entre outros. Procede-se, então, a construção de um contrato que seguem diretrizes, mas não é um processo unilateral, há consenso para determinar as ações.
O Contrato de Gestão passa a ser o indexador para a accountability. As avaliações são baseadas em especificações que constam no documen- to, porém com possibilidade para justificativas. De tal modo, constata-se haver flexibilidade também nas prestações de cotas.
O comparativo entre os contratos indica que não há grandes dife- renças entre eles em se tratando do conteúdo. Os diferenciais estão ba-

27 O limite é de 70% do valor do Contrato de Gestão.

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sicamente nos valores e nos anexos em que são estipulados os números de atendimentos e índices, estes sim variam de acordo com a unidade de saúde gerida. No restante, são ipsis litteris.
O Contrato de Gestão, na percepção de Pahim,28 constitui um instru- mento importante como mecanismo que explicita necessidades específi- cas de serviços por parte daquele que deve planejar a oferta de assistência
à saúde, no caso a secretaria estadual ou mesmo municipal. Mas a autora ressalta que, de acordo com que sugerem seus estudos, o governo não foi capaz de encontrar uma lógica de controle financeiro por resultados. Seria esperado o controle efetivo como parte integrante de uma estratégia que retira do setor público a responsabilidade pela provisão de serviços e o transfere ao setor privado, que para Pahim,29 neste caso opera em con- dições de atuação flexíveis, o que se constatou nesta pesquisa também.
Para a oss, a prestação de contas é imperativa, sendo parte dos esfor-
ços gerenciais. O controle sugere ser efetivo quando se restringe a ses e a Coordenadoria de Gestão de Contratos de Serviços de Saúde. Mas outras instâncias responsáveis pelo acompanhamento produzem indicações de que não sucede o mesmo com eles.
Entre as instâncias para acompanhamento está o Tribunal de Contas. O trabalho como controlador externo tem se demonstrado atuante ante as publicações de suas decisões. Porém, como elemento lícito, tem entre outros pontos o ‘tempo’ como um fator que limita sua atuação. O prazo legal para apresentar provas, justificativas, para recorrer de sentença, et- cetera.
O Conselho Estadual de Saúde possui poderes de fiscalização na ad- ministração direta e indireta, ou seja, nos hospitais estaduais geridos ou não por oss. O conselho se pronunciou contra a utilização de oss na ges- tão pública, fato constatado em várias atas de suas reuniões. Mas, apesar disso, não pode abster de sua função de fiscalização. A verificação na leitu-

28 Maria Luiza Levi Pahim, Organizações Sociais de Saúde do Estado de São Paulo: inserção privada no sus e gestão financeira do modelo pela Secretaria de Estado da Saúde, São Paulo, Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, 2009, p.

140.

29 Loc. cit.

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ra das atas das reuniões indicou que, por meio de Comissões Técnicas, há somente uma parte dos conselheiros que tem acesso total à prestação de contas das oss. Sendo aprovada pela comissão, é apresentada pelo relator ao conselho a Ata da Comissão Técnica do Orçamento e aprovada —ou não — pela plenária.
Os discursos de sindicalistas, políticos, sanitaristas, entre outros contrá- rios às oss recebem fomento com essas constatações. Prestação de contas mais transparente é o que também sugere a Comissão de Saúde da Assem- bleia Legislativa. Esta comissão permanente é a que responde pelo tema
‘saúde’ na casa legislativa e também responsável pelo controle externo das

oss (com o Tribunal de Contas do Estado).

Os relatos e explanações até aqui auxiliam na conferência de atua-
ção do que é titulado como controle externo e interno das organizações sociais. Para esclarecer, é considerado o Conselho Estadual de Saúde como controle interno por ser uma de suas atribuições como instância colegiada do Sistema Único de Saúde (sus) e ser vinculado à Secretaria Estadual da Saúde. O conselho é uma figura em que se legitima a partici- pação social na fiscalização das ações governamentais, todavia pode não significar efetividade real e ainda apresentar insuficiências. A leitura das atas do Conselho de Saúde esboça a posse rotineira de novos represen- tantes, como de sindicatos e associações, mas revela que efetivamente são os representantes do estado que, pelos cargos ocupados e a estabilidade do vínculo empregatício, são os membros de maior permanência. Como os mais interessados são os membros com menor rotatividade, o conhe- cimento, os interesses e a manipulação podem tornar-se facilitados. Há representação do poder público pelo secretário de saúde (que pode ser substituído pelo secretário adjunto),30 os secretários municipais de saúde e representantes da Universidade de São Paulo (que podem também fazer parte de oss).31 Seguindo, prestadores privados de serviços de saúde (enti-

30 Em 2011, por exemplo, o secretário adjunto era José Manoel de Camargo Teixeira, professor da Fundação Getúlio Vargas-sp e também médico Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de sp.

31 Como exemplo, em 2007, Nancime Mansur, que foi anteriormente mencionado como

favorável à implantação das oss e é integrante de uma delas, fazia parte do Conselho.

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dades filantrópicas e com fins lucrativos) e ainda, representantes dos pro- fissionais, como sindicatos de trabalhadores da área da saúde, conselhos de fiscalização do exercício profissional e associação dos profissionais de saúde, entre outros. Mas há também a representação dos usuários, como movimentos populares de saúde, associações de portadores de deficiên- cia e associações de moradores, entre outros. O número é considerável, contudo a participação efetiva nas deliberações aparenta ser sofrível, como afirma um representante de uma associação de portadores de de- ficiências: “a gente não sabe bem do que se trata, então acaba aprovando com a maioria”.32
Com as observações feitas na leitura das atas é possível concluir que há representatividade da sociedade, mas a efetividade das ações tem es- paço questionável. Carneiro Junior,33 em suas conclusões no estudo sobre as oss afirma que se torna evidente “o papel do Conselho como funda- mentalmente vinculado à legitimação das ações do Executivo no caso das secretarias de saúde”.
As ações do controle social, na concepção de Cohn34 “constituem na sua prática cotidiana instâncias de negociação regidas por uma noção que não diferencia bem comum de interesse comum”. Significa que, se o inte- resse de um grupo coincide com de outro, há aprovação e, deste modo, o bem comum da sociedade não se torna ponto central.
as mantenedoras e os mantidos
São as organizações sociais que gerenciam os hospitais, determinam as políticas internas a serem seguidas, estipulam como devem ser os aten- dimentos dentro das normas contratuais e diretrizes dos sus, negociam os contratos de gestão e seus aditamentos, etc. De forma disseminada ao

32 Depoimento colhido por André de Faria Pereira Neto, Conselhos de Favores-controle social na saúde: a voz de seus atores, Río de Janeiro, Garamond, 2012.

33 Carneiro Junior, op. cit., p. 220.

34 Amélia Cohn, “Estado e sociedade e as reconfigurações do direito à saúde”, em

Ciência & Saúde coletiva, vol. 8, supl. 01, Río de Janeiro, 2003, p. 17.

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longo deste estudo foi-se tomando conhecimento de como são compos- tas, identificação dos espaços de atuação, composição de seus agentes, interfaces, políticas próprias, etc. Mas é importante recordar que as oss atuavam no setor da saúde antes de serem qualificadas como tal, no mí- nimo por cinco anos. Todas eram (e continuam) responsáveis por outros hospitais, muitos que podem ser avaliados de grande porte ou referência, portanto, como modelos. Assim legitimam a escolha do secretário de saú- de. Portanto, configura-se o espaço médico que ocupam.
As organizações sociais que atuam na saúde em São Paulo são entida- des filantrópicas. No caso estudado aqui, o governo oferece uma unidade de saúde montada, equipada, pronta para ser usada, a uma organização que, ao aceitar, irá administrá-la. Contudo, a unidade não lhe pertence e permanece sob o domínio estatal. No cadastro junto ao cnes35 o hospital é a própria Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo. Apesar de a gestão ser realizada por outro, o hospital continua propriedade do governo. O ca- dastro dos hospitais gerenciados por oss não se diferenciam dos que são geridos diretamente pela ses. Ressalta-se que todas as unidades de saúde do país devem realizar o cadastro junto ao sus pelo cnes. Nas perspectivas encontradas até aqui, avigora as indicações de Keinert,36 Carneiro Junior37 e Di Pietro38 da administração do serviço público em forma de delegação. São repassadas tarefas (serviços de gestão, por exemplo), mas a posse permanece governamental.
Alguns desenhos das organizações podem ser esboçados em seu re- trospecto e observados em sua composição. A organização social Associação Beneficente Casa de Saúde Santa Marcelina foi formada pelas Irmãs Marce- linas e assim se mantém. O conselho diretivo da entidade é composto pelas

35 Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde: forma a base para operacionalizar os Sistemas de Informações em Saúde.

36 Tânia Margarete Mezzomo Keinert, “Gestão estratégica de políticas públicas de saúde pelos governos subnacionais: estudo sobre o processo de parceria na gestão de serviços hospitalares entre a secretaria de estado da saúde de São Paulo e organizações sociais no contexto da reforma do estado”, em EAESP/FGV/NPP - Núcleo de Pesquisas e Publicações, São Paulo, Relatório de Pesquisa nº 11/2003, 115 pp.

37 Carneiro Junior, op. cit.

38 Di Pietro, op. cit.

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próprias irmãs. O histórico da organização se confunde com o do Hospital Santa Marcelina, importante referência da saúde na zona leste de São Paulo. Soma-se ao grupo religioso a Associação Lar São Francisco de Assis na Pro- vidência de Deus, outra entidade filantrópica religiosa, localizada no inte- rior paulista e também possui o conselho diretivo constituído por religio- sos franciscanos e ainda por integrantes da sociedade. Mais uma entidade religiosa, localizada a oeste da capital paulista, é a Cruzada Bandeirante São Camilo Assistência Médico Social, que tem como superintendente um padre e segue os princípios religiosos Camilianos.
A Universidade Federal de São Paulo subsidia a criação da Associação Paulista para o Desenvolvimento da Medicina (spdm). Localizada também no centro da capital, a unifesp é responsável pela composição dos conse- lhos e dos superintendentes da spdm, quase totalmente compostos por professores doutores. Neste mesmo setor, seguindo, tem-se a faepa, que
é ligada ao Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo. Sua direção é exercida por profes- sores doutores da usp, assim como a maioria dos membros do conselho consultivo e do conselho curador. Mais uma entidade que foi criada por auxílio de uma universidade, a famesp tem em sua diretoria professores doutores da unesp, bem como na maioria da composição dos conselhos de administração e consultivo.
A Fundação do abc formou-se pela união dos três municípios do abc Paulista. É um caso diferenciado, em que a presidência é exercida por indicação de um dos municípios que a compõe, em forma de rodízio.
O Instituto de Responsabilidade Social Sírio-Libanês é apresentado como um instrumento de apoio também ao Hospital Sírio-Libanês (irs- sl). Sua diretoria e o conselho consultivo são escolhidos pela assembleia geral, que tem em sua formação as senhoras da sociedade beneficente Sírio-Libanês e médicos atuantes no hospital.
A Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo é formada por membros da sociedade que passam a ser chamados de Irmãos. Des- ses, são escolhidos os que compõem a Mesa Administrativa, a qual escolhe a diretoria, nomeados como provedor e superintendente. Em geral, são

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profissionais como médicos e educadores da sociedade paulistana, que
consta não receber valores monetários ou vantagens pelo cargo exercido.
O seconci é uma entidade filantrópica que provém do ramo da cons- trução civil na capital. O conselho deliberativo é formado por associados do setor, responsável pela escolha da diretoria e não recebem proventos pelas funções exercidas.
A análise revela que desde a origem das organizações, seus fins e sua composição não se modificaram no tempo nem pela qualificação como oss. As classes envolvidas transcorrem por religiosas, profissionais da saúde, da educação, construção civil, etc. No entanto, a classe médica é efetiva, em especial ainda se consideradas os cargos diretores, mesmo que transitórios. A presença destes profissionais proporciona legitimação das organizações sociais na saúde.
A legitimidade evidencia-se como um anseio das entidades, especial- mente por estarem em um espaço muito propenso a críticas e sob olhares de toda a sociedade. Destarte, a promoção das oss por meio de eventos e publicações é uma das ferramentas utilizada para difundir e legitimar suas ações. Foi possível rastrear vários eventos realizados para divulgação e análises do papel das oss em São Paulo. Em geral, consiste na promoção instigada por uma organização social com patrocínio de outras entidades da área ou mesmo pelo governo. O governo sempre se faz presente, por ser contratual o uso do símbolo e o descritivo oss. Todavia, também nas falas de afirmações explícitas de saúde pública, especialmente da vincula-
ção ao sus.39
Além de procurar legitimar a atuação das oss, as falas proferidas e publicações levam a constar a ocorrência de um discurso similar. Entre os escopos, evidenciar a ação governamental e a busca por melhorar o aten- dimento na saúde, realçados por publicações como “atendimento 100% sus”, postagem dos símbolos do governo junto aos das oss, publicações de comparativos favoráveis, entre outros. A presença do governo é funda- mental para calar críticas de terceirização, como citado por Gonçalves no

39 Sistema Único de Saúde.

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Parecer sobre terceirização e parceiros na Saúde Pública:40 “a terceirização da Saúde, [...] dá oportunidade a direcionamento em favor de determina- das organizações privadas, fraudes e malversação de verbas do sus”.
Também se corrobora interesse em expor ações de aprimoramento da accountability, foco de muitas críticas sobre o tema. Sobretudo, real-
çar o aspecto qualidade hospitalar, seja por meio da gestão dos recursos humanos, estratégias gerenciais ou exposição de certificados conquista- dos. Essas ações remetem-nos à justificativa, que Boltanski e Thévenot41 mencionam serem os combates dos agentes colocados em situações de discordância em um espaço social, como estímulo de argumentos persu- asivos para se defenderem.
Sobre os hospitais mantidos, algumas conclusões passam a ser apre- sentadas. Em relação ao cnes, as diferenças existem entre os hospitais da administração direta e da indireta, mas com limitações nas evidências. É certo, por exemplo, que a rotatividade de funcionários públicos é menor que nos gerenciados devido à estabilidade dos públicos.
A flexibilidade de contratação de mão de obra é uma das principais bandeiras dos defensores das oss. Com a flexibilidade, pode-se trocar de funcionário caso ele não se adéque as políticas do hospital, fato defendido por contratante e contratado, como afirma Wieliczka42 “Na os essa estabi- lidade está muito mais ligada à avaliação do desempenho deste profissio- nal no seu dia-a-dia”. E manter o vínculo por atuação é reforçado pelos profissionais envolvidos. Observe: “Implica que temos compromisso com os resultados, trabalhamos para uma empresa —põem-se os objetivos ao cargo pretendido, se aceita o desafio ou não”.43

40 Ministério Público Federal, Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão,Brasília,

Parecer sobre terceirização e parceiros na Saúde Pública, 1998, p. 17.

41 Luc Boltanski e Laurent Thévenot, De La justification: leseconomies de lagrandeur,

París, Gallimard, 1991.

42 Maria da Gloria Z. Wieliczka, “A Humanização para o Profissional de Saúde: Alternativas de Gestão Pública”, em Revista do GVSaúde da FGV-EAESP, núm. 07, Primeiro Se- mestre de 2009, p. 15.

43 Depoimento recolhido com um médico de oss, 2013.

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A projeção pelo desempenho por parte da organização —contratan- te— e seu reconhecimento pelo outro lado, o profissional contratado, pode atuar como sincronizador das ações desenvolvidas no hospital. A possível convergência nos interesses contradiz discursos como do pre- sidente do Sindicato dos Médicos de São Paulo. Em entrevista à autora, Cavalhaes44 afirmou ocorrer índice elevado de rotatividade dos médicos, constatados pelo sindicato e acompanhados pelas rescisões. Seria uma parte apenas, pois muitos médicos se desligam sem fazê-lo devido serem contratados de outras formas (exemplo de autônomos).
O embate proporciona visualizar as forças atuantes no espaço estu- dado, buscando reconhecimento. Além disso, incluem-se nuances que fa- cultam justificativas na luta. No caso dos médicos, temas como ambiente apropriado, condições de trabalho e falta de profissionais entram como qualitativos que podem servir de condutor. Em verdade, como todos pos- sivelmente desejam, o médico entrevistado finaliza sua fala com o seguin- te argumento “O profissional de saúde deseja, entre outras, exercer sua profissão com dignidade”. Talvez seja a justificativa cabível a ambos os casos no embate do espaço ocupado.
A flexibilidade para gerenciar os recursos humanos é também uma bandeira que acena nos discursos favoráveis às oss. A facilidade para con- tratar e demitir é confirmada maior do que na administração direta (esta- tutários), portanto a rotatividade tem possibilidade de ser superior. O fa- tor limitante fornecido no Contrato de Gestão é não ultrapassar os gastos com salários e afins em 70% do valor global das despesas de custeio. Nos relatórios, há variação de percentuais entre as entidades, demonstrando que políticas de recursos humanos são diferenciadas entre elas, mas há predominância nas contratações clt45 sobre a terceirização. As formas de contratação utilizadas pelas oss em seus hospitais gerenciados podem ser via registro clt (se demonstrou a mais usual), via cooperativas, contrata- dos por equipes ou ainda podem ser contratados como pessoas jurídicas. A flexibilidade na contratação sempre é enfatizada pelos gestores da área.

44 Entrevista concedida em 27 de maio de 2013.

45 Legislação Brasileira sobre a Consolidação das Leis do Trabalho.

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A terceirização segue nos registros verificados. O predomínio ocorre em serviços de apoio como ambulância, lavanderia e laboratório. A ter- ceirização, pelos registros do cnes, é presente em todos os hospitais que constam neste estudo (administração direta ou indireta), com no mínimo um serviço dos serviços de apoio repassado a terceiros.
a gestão hospitalar nas unidades mantidas
Talvez seja o produto de mais expressividade que as oss divulgam. A forma como se gerencia o hospital é a garantia de colheita dos resultados, seu game over junto à sociedade e junto a sua contratante, a Secretaria de Saúde. É a procura por legitimar a atuação das oss. Provavelmente por este motivo, o gerenciamento hospitalar tem se revelado, para algumas oss, objeto de exposição e consignação. Entretanto, segue acolá disso.
A gerência hospitalar revelada pelo cnes tem algumas particularidades. Em âmbito geral, os cargos de diretores são exercidos por profissionais da saúde nomeados pela direção das organizações sociais. A direção clíni- ca e a direção técnica devem seguir a Resolução do cremesp46 nº 134, que regulamenta a Resolução do Conselho Federal de Medicina nº 1.481/97. São cargos que só podem ser exercidos por profissionais médicos, de acordo com a resolução.
De forma geral, a administração hospitalar das unidades geridas pelas oss tem seguido sua constituição, como formada por professores no caso das provindas da educação/pesquisa, ou por padres/irmãs, nas religiosas. Nos demais cargos como assistentes e auxiliares junto aos cnes observa-se variação para cada hospital, mas é válido rememorar que a terceirização pode custar omissão de dados.
Com obrigações prescritas no Contrato de Gestão, como manter um
Serviço de Relacionamento com Cliente47 que visa traduzir em números a

46 Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo.

47 A Secretaria de Estado de Saúde também dispõe de serviço de Ouvidoria para todas as unidades de saúde. Entretanto, verifica-se menor divulgação aos usuários. Por exemplo, o contato da ouvidoria é disponível no site da ses.

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satisfação dos serviços prestados nos hospitais, além de índices a serem alcançados, a gestão hospitalar tem a imperiosa obrigação de funcionar, de fazer a “coisa andar”. As estratégias são diversificadas, mas seguem o caminho gerencial das organizações e suas ferramentas: planejamen- to estratégico, bsc (Balance Score Card), pdca,48 Just in time, gestão de processos, Lean Six Sigma. Todas as táticas usadas vão de encontro com os objetivos que devem ser impetrados, mas pode-se afirmar que há uma atenção especial à qualificação profissional.
As políticas aplicadas aos recursos humanos não se tratam de exclu- sividade da administração indireta. Aos hospitais sob o governo estadual incide a Coordenadoria de Recursos Humanos, vinculada à ses, que entre outras atribuições tem a missão de planejar, coordenar e promover ações de gestão de pessoas e efetivar políticas que se distribuem por áreas como apoio ao desenvolvimento institucional, seleção e desenvolvimento de re- cursos humanos, planejamento dos processos de recrutamento e seleção, controle de recursos humanos, etc. Entres as estratégias, por exemplo, o recebimento por produtividade também é precedente em hospitais da administração direta. O Prêmio de Produtividade Médica ( ppm)49 e o “Contrato Programa” (espécie de contrato visando resultados e respectiva remuneração) são algumas das ações da ses para incentivo nos hospitais de administração direta.
Outro objetivo dos hospitais mantidos é a interação com a comuni- dade, sugerida pela ses e que se demonstrada ativa. É o caso da Política de Humanização,50 indicada pelo sus em nível nacional e adotada pela ses de São Paulo ( portanto, sua propagação deve estender-se por todos

48 Plan–do–check–act, ferramenta de gestão com as quatro ações utilizada para controlar e melhorar processos e/ou produtos.

49 Estabelecido pela Lei Complementar nº 1.193/2013. Anteriormente, havia outras

formas de incentivo à produtividade, como estabelecido na Lei 9.352/1996, Lei

10.154/1998 ou ainda pela Lei 14.016/2010 que foram incorporadas pela publicada em 2013.

50 A política busca potencializar e fortalecer uma cultura humanizadora para contribuir na solução de desafios que, reconhecidamente, dificultam a qualidade da implementação do sus. Pode ser acessada na http://www.saude.sp.gov.br/humanizacao/homepage/ acesso-rapido/politica-estadual-de-humanizacao.

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os hospitais geridos ou não por oss). A humanização procedente nos hospitais da administração direta ou indireta é compreendida como uma necessidade pelo sus.
Como suporte, a auditoria interna e auditoria externa reforçam as es- tratégias de qualidade hospitalar, visando à gestão de qualidade ou, como o exemplo, atendendo políticas direcionadas pelo Estado. Somam-se às auditorias externas as destinadas a acreditação hospitalar, incentivada também pela ses e que parte expressiva dos hospitais gerenciados por oss participam (pesquisados os hospitais relacionados como referência para a pesquisa e não foram encontrados na relação de organizações certifica- das). Para alcançar a acreditação, algumas oss e seus hospitais fazem uso de empresas de consultoria em gestão, por vezes específicas na gestão hospitalar e para organizações sociais, e ainda de auxílio gerencial. Como resultados, em 2013 foram contabilizados 11 hospitais estaduais com al- gum nível de acreditação, todos geridos por oss.
Contrapõe-se com as perspectivas relatadas por Montaño,51 em que a eficiência nos serviços públicos por meio da publicização seria alcançada devido à precarização, focalização e localização dos serviços, com perda das dimensões de universalidade, de não-contratualidade e de direito do cidadão, retirando a responsabilidade do capital. No discurso sindicalista de Cavalhaes,52 a rotatividade elevada nos hospitais mantidos por oss su- gere o descontentamento com as condições trabalhistas, portanto não se- ria a opção do profissional da saúde entre os seus objetivos e os objetivos apresentados pelo hospital.
considerações finais
De acordo com as evidências coletadas com a pesquisa, algumas discus- sões passam a ser sugeridas. Inicialmente, das parcerias entre Estado e sociedade foram abertas vagas na saúde públicas a serem ocupadas por

51 Montaño, op. cit.

52 Entrevista em 27 de maio de 2013.

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“pessoas jurídicas de direito privados”, e mesmo sem fins lucrativos, tra- balham na perspectiva da iniciativa privada. Estes espaços passaram a ser geridos por organizações sociais que contratam preferencialmente profis- sionais formados pelas próprias (ou institutos ligados a elas). Desta forma são disseminadas suas técnicas, estratégias, conhecimentos, domínio, cul- tura. Também estes médicos, que são os ocupantes de cargos de diretores nos hospitais, fomentam estratégias que visam alcançar números e índices estipulados por Contratos de Gestão. Além disso, busca-se ainda garantir a legitimidade da ocupação pela oss neste ambiente considerado.
Cria-se, portanto, um novo espaço que passa a ser tomado por enti- dades do setor privado sem fins lucrativos na área da saúde pública. Desta ocupação e em busca de sua legitimidade, as oss qualificadas distribuem- se pelo território estadual, demarcado por intermédio de disseminação cultural (também com anseio de ampliar sua região de abrangência, que se evidencia por estratégias e resultados expostos em uma luta simbólica).
Em grande parte dos casos, as unidades de saúdes geridas por deter- minada oss têm localização aproximada, ajustado para que a organização seja responsável por determinada “região” da saúde. Sobre a distribuição localizada no interior paulista, a oss Lar São Francisco possui quatro hos- pitais sob sua gestão, ficando com a região noroeste do estado. A faepa é responsável pelo hospital em Ribeirão Preto, e em Bauru a responsabilida- de é da famesp. Na perspectiva espacial da grande São Paulo, tem-se então a região leste com ocupação da oss Santa Marcelina, a região centro-sul está sob os cuidados da spdm e a Cruzada São Camilo também na central mais a oeste da região metropolitana de São Paulo. O irss, a última orga- nização qualificada pelo estado, está se localizando ao sul. A Santa Casa é responsável pela região norte, como em Guarulhos, Francisco Morato e Franco da Rocha. A Fundação do abc está no seu local de fundação, seu berço. O seconci é o mais distribuído, no centro e também no sudoeste.
Como as organizações também estão vinculadas à formação de pro- fissionais, tornam-se pólos de distribuição e aplicação de seus conheci- mentos e princípios, marcando posições dominantes. Ressalta-se que nes-

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te processo de domínio há anuência do governo, por ser quem convida e determina qual a oss vai gerir determinada unidade de saúde.
A segunda proposta para discussão refere-se à reestruturação e a in- serção de agentes que, de acordo com Bourdieu,53 geram um rearranjo de forças proporcionais ao poder que exercem. Destarte, com a lei se estabelece uma nova distribuição de poder ao governo estadual sobre as organizações qualificadas e abre-se para atuação de entidades como Con- selho de Saúde, Assembleia Legislativa e o Tribunal de Contas (como fis- calizadores).
Para se sustentarem no espaço e garantir que seus clientes (pacien- tes) fiquem satisfeitos, as oss precisaram adotar algumas imposições e reformular estratégias. É o caso da inclusão de representantes da socieda- de junto ao Conselho Administrativo, um requisito imposto pela lei que tem o poder de minimizar críticas de opositores. A gestão pela qualidade
é imputada pela necessidade de alcançar índices (inclusive de satisfação dos pacientes), advindos da forma gerencial ingressa na parceria com a iniciativa privada. As críticas, que Boltanski e Chiapello54 consideram fun- damentais para mudança, têm efeito explícito identificado pelo estudo. O discurso unívoco de eficiência proferido pela rede organizacional envolta no processo de delegação às oss ecoa como justificativa para apaziguar os opositores. A exposição em eventos, fóruns, publicações, etc., busca legitimar o processo, mostrar mudanças, apresentar resultados favoráveis, ressaltar qualificação, ou como afirmam os autores, buscar apoio moral para aperfeiçoar e incorporar dispositivos de justiça.
As primeiras bandeiras contrárias às oss foram levantadas pelos sani- taristas, e muitos ainda seguem com ela. Mas as críticas podem ter exer- cido o seu papel e o reconhecimento da correlação de forças atuais que agem sobre o sus —tais como fundações estatais e oss—,55 seria um dos primeiros indicativos de acedência pelo movimento. Um representante

53 Pierre Bourdieu, “O Campo Econômico”, em Revista Política & Sociedade, núm. 06,

2005, pp. 15-57.

54 Boltanski e Chiapello, op. cit.

55 Sonia Fleury, “Defesa intransigente do interesse público na saúde”, em 2º Simpósio de Política e Saúde, Brasília, Teses/cebes, junho de 2011, 21 pp.

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sanitarista afirma haver uma “propensão às iniciativas de agenciamento colateral da administração indireta, com migração para a égide e marco regulatório do Direito Privado”.56 Para ele, é necessário lutar por reformas substanciais na administração pública que possibilitem melhorias na ges- tão orientada, não restrita às continências de controle, regulação e con- dução. É importante recordar que representantes do governo sinalizaram também a necessidade de adequações e mudanças nas parcerias com a sociedade. A pesquisa de Dowbor,57 que expõe a incursão de sanitaristas no governo Lula, já repercute uma nova forma gerencial de parceria bati- zada como Fundação Estatal (que se assemelha ao das os).58
Na sequência das discussões propostas, analisa-se que a privatização e a desestatização não ocorrem efetivamente, considerando-se que a presença do Estado se mantém na propriedade do hospital, nos índices estabelecidos no Contrato de Gestão, no próprio contrato, na prestação de contas, nos re- cursos repassados, etc. Também não se considera uma terceirização, o que seria ilegal - observado que a justiça permite apenas terceirizar ‘atividades meio’, como serviços de lavanderia, limpeza, segurança, etc. Autentica-se, portanto, a classificação de Di Pietro,59 Carneiro Junior60 e Keinert61 como delegação, explanado pelo repasse da gestão do serviço público a outrem, pessoa jurídica de direito privado, porém sem fins lucrativos. Com a de- legação, a participação social a que se propunha o movimento estatal que resultou na lei em foco nesta pesquisa, se concretiza na escolha individual

56 Alcides S. Miranda, “Que alternativas para a gestão pública de sistemas e serviços de saúde”, em 2º Simpósio de Política e Saúde, Brasília, Teses/cebes, junho de 2011, p. 18.

57 Monika Weronika Dowbor da Silva, A arte da institucionalização: estratégias de mobilização dos sanitaristas (1974-2006), São Paulo, Tese/Universidade de São Paulo,

2012, p. 294.

58 As informações podem ser visualizadas na proposta para debate disponibilizada pelo Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão em http://www.planejamento.gov. br/secretarias/upload/Arquivos/seges/fundacao_estatal/arquivos/081005_PFE_Arq_ proposta.pdf.

59 Di Pietro, op. cit.

60 Carneiro Junior, op. cit.

61 Keinert, op. cit.

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do secretário de saúde pela oss que irá gerenciar a unidade de saúde de-
finida. Há indicações, entretanto a palavra final é individual, sem licitação.
Para finalizar focaliza-se o hospital, lócus de embate desta pesquisa, e recorre-se aos direcionamentos de Donadone,62 em estudo envolvendo consultores e gerentes no país. Afirma o autor que “[...] é possível visuali- zar um processo de guerra cultural onde a visão financeira da empresa se encontra situada no quadrante do individualismo ativo”, na explicação da atuação dos consultores como intermediadores em um mundo gerencial, até então ocupado por gerentes.
Ao converter este conceito para o hospital, tem-se que os contratos de gestão fornecem as metas, os índices a serem alcançados e estes são os resultados que os médicos precisam apresentar. Acatar o propósito é escolha dos médicos e pode ser conferido em seus discursos: “[...] o fato de sermos profissionais contratados (regime clt) implica que temos com- promisso com os resultados, trabalhamos para uma empresa —põe-se os objetivos ao cargo pretendido, se aceita o desafio ou não” (médico 04). O foco médico nos resultados assemelha-se aos consultores na intermedia-
ção exercida. Vide: “[...] a gestão de um hospital por oss se assemelha do modelo privado, que é voltado para a obtenção de resultados mediante otimização de recursos(médico 05). E as ferramentas gerenciais, as quais são exploradas com maior sagacidade que nos hospitais da administração direta para legitimar sua atuação no espaço em que ocorre o embate, é a forma de garantir que seus propósitos (leia-se projetos) sejam alcançados.
A flexibilidade presente nos discursos da oss garante ao profissional da saúde (individual ou equipe, por meio da legislação pertinente, con- tratos, etc.) executar seu projeto e, ao considerá-lo finalizado, sua saída
é certa, partindo para outro. Consta na descrição do Novo Espírito do Capitalismo de Boltanski e Chiapello,63 a respeito da Cidade por Projetos a explicação para essa movimentação: “Mas, como os projetos, por nature- za, são temporários, a aptidão para desligar-se de um projeto e ficar dispo- nível para novos elos conta tanto quanto a capacidade de engajamento”.

62 Donadone, op. cit., p. 115.

63 Boltanski e Chiapello, op. cit., p. 144.

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A sAúde públicA intermediAdA por orgAnizAções sociAis: ArrAnjos e configurAções...

E ao concluí-lo, o médico se ‘engaja’ em outro, facilitado pelo mercado de trabalho ocupado. Insere-se neste engajamento a fala do agente, que refle- te a ocupação do espaço “Possibilidade de trabalhar com pessoas na maio- ria da mesma instituição acadêmica” (médico 01). Complementa-se com a constatação de que os profissionais, em sua maioria, possuem outros vínculos na ‘rede’ de serviços da oss a qual optaram a pertencer. Assim, o que o sindicato declara como elevada rotatividade pode ser, em verdade, a opção do profissional em executar um novo projeto.
Como observado ainda pela pesquisa o mundo gerencial faz-se pre- sente nos hospitais da administração direta. A entrevista de um agente envolvido que declara que o hospital gerido por oss é “Ambiente de tra- balho sem vieses da administração pública convencional” (médico 02), foi revelado também por Donadone64 em que os consultores identificavam este mundo como burocrata. As análises dos hospitais geridos por organi- zações sociais qualificadas e os hospitais da administração direta demons- traram que as ferramentas gerenciais estão à disposição de ambos. O que distingue é a forma como os hospitais mantidos utilizam-se delas na ges- tão que lhes é delegada.

Quadro 1. Relação das organizaçõe sociais da saúde e dos hospitais geridos

Associação Beneficente Casa de Saúde

Santa Marcelina

Itaquera, São Paulo-sp

- Hospital Geral de Itaquaquecetuba

- Hospital Geral do Itaim Paulista

Assoc. Lar São Francisco de Assis na

Providência de Deus

Jaci-sp

- Hosp. Reg. de Presidente Prudente

- Hospital Estadual João Paulo II

- Hospital Regional Porto Primavera

Assoc. Paul. Desenvolvimento da Medicina

-spdm

São Paulo-sp

- Hosp. Clínicas Luzia de Pinho Melo

- Hospital Brigadeiro

- Hospital Estadual de Diadema

- Hospital Geral de Pirajussara

Cruzada Band. São Camilo Assistência

Médico Social

Cotia-sp

- Hospital Geral de Carapicuíba

- Hospital Geral de Itapeví

- Hospital Geral de Pedreira

64 Donadone, op. cit.

59 (México 2014/2): 69-98 97

Julio Cesar DonaDone

Fundação de Apoio ao Ensino Pesquisa e

Assistência hcfmrpusp-faepa

Ribeirão Preto-sp

-Hospital Estadual de Ribeirão Preto

Fundação do abc

Santo André-sp

- Hospital Estadual Mário Covas de Santo

André

Fund. Desenvolvimento Médico-Hospitalar

- famesp

Botucatu-sp

- Hospital Estadual de Bauru

Instituto de Responsabilidade Social Sírio

Libanês

São Paulo-sp

- Hospital Geral do Grajaú

Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo

São Paulo-sp

- Hospital de Franco da Rocha

- Hosp. Estadual de Francisco Morato

- Hospital Geral de Guarulhos

Serviço Social da Construção Civil do

Estado de São Paulo- seconci

São Paulo-sp

- Hospital Estadual de Sapopemba

- Hospital Geral de Itapecerica da Serra

- Hospital Estadual de Vila Alpina

- Hospital Regional de Cotia

98 (México 2014/2): 69-98 59

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