Souza, Jessé. A classe média no espelho: sua história, seus sonhos e ilusões, sua realidade. Rio de Janeiro: Estação Brasil: 2018. 288 pp.
DOI: 10.22201/cialc.24486914e. 2020.71.57214
A sociologia brasileira, mesmo quando ainda não era considerada uma disciplina acadêmica, período conhecido como pré-científico, tem se dedicado a elaborar, dentre outros temas, sínteses teóricas sobre questões relacionadas à formação do Estado nacional brasileiro e sobre a proble-
mática da identidade nacional (Liedke Filho 2005). Nesse esforço, dife-
rentes orientações teórico-metodológicas foram utilizadas para tratar as questões derivadas dessas “grandes matrizes” do pensamento social brasileiro, nas quais vê-se impressa uma mobilização tanto de teóricos clássicos, quanto de contemporâneos da sociologia.
A disputa de visões sobre o que é o Brasil atinge outro nível na passagem do período da sociologia pré-científica para o período da sociologia científica. Segundo Fernandes (1977: 27), o período de produção que se inicia a partir do século xx é marcado pelo uso de “modelos mais complexos de análise histórico-pragmática, em que a interpretação do presente se associa a disposições de intervenção racional no processo social”.
O desenvolvimento, autonomização e diversificação da área de produção de conhecimentos sociológicos no Brasil gerou uma multiplicidade de abordagens, problemáticas e temas de interesse. No entanto, para as finalidades desta resenha, situar este debate implica localizar a tradição da qual o professor Jessé Souza é herdeiro. Neste trabalho objetivamos, além de apresentar sua mais recente obra, situar como o autor tem ressignificado o debate, realizado no interior da Sociologia no Brasil, sobre a singularidade brasileira ao estabelecer um diálogo com as principais referências da sociologia científica no país, atualizando teses e interpretações clássicas sobre os mitos, ideias, ações e relações que estruturam o Brasil e nossas narrativas sobre ele.
No Brasil, a passagem do século xix para o século xx é marcada pela busca por interpretação de sua própria singularidade enquanto nação e enquanto povo, dois conceitos ganharam centralidade nesse movimento: meio e raça (Ortiz 2012). O primeiro buscava compreender a natureza como fonte para os fenômenos políticos, econômicos e sociais do Brasil. Foi neste contexto que os Institutos Histórico-Geográficos surgiram com o objetivo de analisar as características geográficas que determinavam a organização social no país. Associada ao estudo da natureza, a raça tinha um papel preponderante na explicação da singularidade brasileira.
No entanto, com o avanço do capitalismo industrial, a partir de finais dos anos 1960, a questão da singularidade brasileira toma outro rumo no debate nacional. Ao mesmo tempo, a sociologia, enquanto área do conhecimento, buscava definir sua especificidade, seus procedimentos científicos e a formação de um campo de pesquisas sociológicas. Nesse sentido, os sociólogos entraram na disputa com outras áreas e outros profissionais pela legitimidade de caracterização do Brasil. Dessa disputa resultaram modelos de interpretação da realidade nacional diversos, por vezes concorrentes, e que contribuíram para a compreensão do país.
É neste mote que Jessé Souza recebe a herança intelectual dos intérpretes do Brasil e faz a crítica de suas bases para a partir de então construir seu modelo de interpretação social. Sua produção tem se interessado por uma explicação geral das características constitutivas da sociedade brasileira (Avritzer 2001). Seus trabalhos têm se voltado para os mitos e instituições que formaram o caráter nacional, ou seja, as estruturas objetivas e subjetivas que lastreiam as práticas coletivas no país.
O argumento principal que atravessa todos os trabalhos de Jessé Souza é o de que a modernização em sociedades de capitalismo periférico se distingue das sociedades de capitalismo avançado por desenvolver hierarquias sociais que diferenciam cidadãos de primeira classe, ou seja, pessoas cujos direitos individuais são respeitados, e cidadãos de segunda classe, pessoas que, pela sua origem social, não dispõem da mesma respeitabilidade quanto aos seus direitos fundamentais. Em linhas gerais, esta é a tese da subcidadania desenvolvida pelo autor.
Em seus trabalhos, Jessé Souza demonstra como esta hierarquização social estrutura ações, julgamentos, pensamentos, etc. no Brasil. No trabalho que ora concentramos nossa atenção, “A classe média no espelho: sua história, seus sonhos e ilusões, sua realidade”, não é diferente. Neste livro, o autor irá se perguntar sobre o papel da classe média na constituição da subcidadania. Com isto em mente, ele busca reconstruir a gênese dos mecanismos de construção de visões de mundo e de consensos sociais articulados.
Se, como demonstramos inicialmente, não é possível tomar a produção de Jessé Souza apartada de seu empreendimento intelectual de diálogo, crítica e atualização da tradição sociológica que interroga as particularidades fundacionais de um Brasil, tampouco é aceitável tratar de um de seus livros de forma a apartá-lo de seus demais escritos nas três últimas décadas. Nesse sentido, por que a classe média se torna objeto privilegiado de análise de Jessé? A sua agenda de pesquisa tem sido povoada pelo constante exercício de compreender a Modernidade no Ocidente, passando pela preocupação com as questões ligadas à desigualdade nas sociedades capitalistas e às relações de interdependência e poder entre as classes sociais. Estes temas mais gerais foram se desdobrando ao longo de sua carreira e nos últimos quinze anos seus livros trazem seus desassossegos e análises em torno de uma Modernidade periférica que confere contornos próprios à configuração da sociedade brasileira.
Teses como a construção da subcidadania, a modernização seletiva e as especificidades que as classes e as frações de classes apresentam no Brasil têm servido de constructo de bases epistêmica, teórica e empírica para a produção acadêmica de Jessé Souza.1 Em “A classe média no espelho”, o autor retoma não somente este quadro conceptual, como também discussões que vêm marcando seu diálogo com autores clássicos da Sociologia nacional, com vistas a situar a relação entre a construção de mitos nacionais e a força de tais mitos no imaginário e na ação e configuração social. O livro é dividido em três partes: a primeira trata da moralidade da classe média, enquanto a segunda apresenta o seu percurso de construção e a última parte é responsável por apresentar as trajetórias dos sujeitos da pesquisa que originou a obra.2
É importante destacar que se trata de uma produção que revisita debates ancestrais à Sociologia e às Ciências Sociais —incluindo aqui temas que o autor vem discutindo em alguns de seus últimos livros—, ao passo que os toma como tela sobre a qual a moral, as relações e as ações da classe média brasileira se inserem na complexa trama histórica e cultural que as classes sociais desenham no Brasil.
A relação entre ideia, mitos e comportamento prático, a interdependência entre as classes sociais, a noção de classe como reprodução de privilégios (e, consequentemente, como reprodução de “desprivilégios”) e a conexão entre moralidade, ética e configuração social constituem os fios condutores deste livro. Três questões merecem destaque: o autor ressalta a necessidade de entender a classe média para além da questão da renda e superar, assim, as falsas concepções amplamente veiculadas no Brasil sobre tal estrato; tece uma crítica à perspectiva do economista Marcelo Neri (2012) sobre a narrativa do surgimento de uma “nova classe média” no Brasil a partir de investimentos nos excluídos nos governos do Partido dos Trabalhadores; e defende, como ponto de partida para pensar a classe média, o pressuposto de que as classes não existem isoladas no mundo social, pelo que estão sempre em relações de aliança e de disputa com outras classes sociais com vistas aos recursos escassos.
O intuito de Jessé Souza é, portanto, conferir relevo a elementos parcamente explorados na literatura nacional quando se enfrenta, seja como tema ou como categoria, o debate sobre classe social: o autor está tratando do individualismo ético próprio da classe média, bem como das formas mais específicas que a personalidade moderna assume no seio desta classe, e ainda, e sobretudo, das suas especificidades no contexto brasileiro.
A base epistêmica e teórica que Jessé Souza mobiliza para desenvolver sua argumentação nesta obra tem em Charles Taylor, Pierre Bourdieu e Max Weber seus principais interlocutores, posto que é a partir destes constructos que a compreensão da relação entre as ideias e a ação social toma forma. Deste debate é possível depreender que o autor levanta questionamentos como: que ideias dão sentido à ação? Como entender a eficácia das ideias à medida que elas se tornam guias para o nosso comportamento prático? E, mais especificamente: como tais questões se colocam para se pensar a classe média no Brasil? Este mote da discussão conecta-se com três elementos que, na obra de Jessé Souza, possuem uma contiguidade lógica e argumentativa: a leitura das implicações do pensamento de Sérgio Buarque de Holanda, Raymundo Faoro e Fernando Henrique Cardoso para a legitimação de um “Liberalismo Vira-Lata” como mito nacional hegemônico; a contraposição do self-made man americano a ideias como o “homem cordial” brasileiro; e a força dos mitos nacionais na estruturação de uma moralidade de classe, das relações sociais e, sobretudo, do apartheid social.
Vale a pena destacar que o autor vai contrapor o pensamento social paulista da primeira metade do século xx, que acabou por ganhar força na interpretação da singularidade brasileira, ao pensamento de Gilberto Freyre. Segundo Jesse Souza, a narrativa de Freyre revela um caráter mais inclusivo no que diz respeito à participação das classes populares no processo de desenvolvimento capitalista brasileiro, ao passo que acaba por construir uma interpretação mais positiva do povo brasileiro.
A partir disso, o autor enfrenta grandes questões que povoam o imaginário social nacional e que, segundo sua interpretação, possuem raízes no entrecruzamento dos três elementos supracitados, tais como: a criminalização do Estado frente a uma ideia de Mercado como virtuoso e paradisíaco, o patrimonialismo, a corrupção e a meritocracia. Para Jessé Souza, no contexto brasileiro tais questões são expressões da dominação entre as classes sociais e, mais ainda, são reveladoras de um movimento constante de moralização da opressão. Em que isto se alinha com o exercício de pensar a classe média brasileira? É exatamente nos desdobramentos da correlação entre o mito nacional, sua legitimação por parte da intelectualidade paulista e seu peso de justificação da violência simbólica nas distâncias sociais —e aqui encontram-se fortemente marcadas as noções de inferioridade social e subcidadania— que Jessé Souza constrói sua análise sobre a moralidade da classe média no Brasil.
O esforço analítico do autor contempla ainda a desconstrução da confusão entre moralismo e moralidade e ainda a percepção desta última como algo natural, posto que a moralidade é, por definição, social. Assim, estariam ligados ao processo de construção da moralidade da classe média nacional movimentos de longa duração e elementos mais recentes, a exemplo de: a) a noção de indivíduo moderno e as consequentes relações entre suas necessidades internas e externas e ainda a capacidade de autorreflexão; b) a noção platônica de virtude como importante definidora de nossas avaliações do mundo; c) a passagem da religiosidade para a secularização do mundo e a tônica nas concepções de eficácia e disciplina; d) as relações entre capitalismo, individualismo e a fábula da liberdade para escolher o caminho, a vida, a moral, a razão e a prática; e) o indivíduo como consciência moral a partir da relação entre o expressivismo e a valorização do trabalho útil; e f) o nosso passado escravocrata como elemento para entender a perpetuação de uma sociabilidade violenta. Nas relações com os demais estratos, a classe média moraliza sua condição. Ela se distancia das classes mais pobres e, segundo o autor, ao herdar o abuso e o sadismo de seus avós, “nossa classe média não apenas explora economicamente as classes abaixo dela, ela humilha covardemente os mais frágeis, os esquecidos e abandonados tanto por ela, classe média, quanto pela ‘elite do atraso’” (Souza 2018: 73).
O percurso de construção da classe média brasileira é abordado por Jessé Souza a partir de um recuo histórico até o século xix, com vistas a demonstrar as transformações sociais que se tornaram condições de possibilidade para a emergência de uma classe média. Em um primeiro plano é preciso compreender que o Brasil, mesmo pós-abolição da escravidão, mantinha um “acordo de classes” que, mesmo tácito, garantiu a conservação da restrição do reconhecimento da humanidade e dignidade somente aos não-escravos. A perenização de tal acordo acarretou, por sua vez, uma valorização da distância social com relação àqueles que de alguma forma encontram-se próximos à condição de escravo —é exatamente desta distância que alguns estratos retiram sua dignidade e autoestima social, a nascente classe média encaixa— se perfeitamente aqui. E, em um segundo plano histórico, o autor ressalta o processo de urbanização do país como ensejo para pensar a gênese da classe média.
Isto se deve às consequências da urbanização e da migração do campo para a cidade, uma vez que o contexto de domínio absoluto do latifúndio no campo não caracterizava cenário propício para a formação de uma classe média. Jessé Souza demonstra que o capitalismo industrial, a vida citadina, o surgimento de novas profissões (tais como: alfaiate, modista, livreiro, comerciante, etc.), de novos símbolos de poder (do padre ao médico, dos senhores de terra aos juízes e diretores de escolas, por exemplos) e ainda os novos padrões de consumo, de vida e de comportamento são processos correlatos e que viabilizaram o que chamamos hoje de classe média no Brasil. Nesta novíssima configuração social, o conhecimento será o principal capital da classe média. Percebe-se aqui que a formação desta classe é paralela à consolidação da elite nacional e da ralé.
Finalmente, a partir dos achados empíricos da pesquisa, Jessé Souza defende a existência de uma fissura vertical e hierárquica no interior da própria classe média, o que o leva a dividi-la em “alta classe média” e “massa da classe média”. A primeira é comumente associada à elite e, por isso, desempenha um papel de mimese e acaba por defender a perpetuação dos privilégios e da dominação da elite nacional. Por sua vez, a massa da classe média possui uma necessidade de distinção das classes baixas e alimenta constantemente um medo de sofrer algum tipo de precarização, pois sua distância com relação aos estratos mais baixos não é tão longa e ela poderia facilmente sofrer um movimento de decadência social.
O material das entrevistas realizadas com sujeitos tanto da alta classe média quanto da massa da classe média é revelador das características que lhes são específicas, indicando assim a moralidade, a visão de mundo e as práticas próprias de cada uma destas frações de classe. O autor, nesta última parte da obra, permite que os depoimentos de seus entrevistados, os quais revelam-se como casos emblemáticos, lembrem ao leitor as discussões que percorreu ao longo dos capítulos anteriores e, assim, nas falas desses sujeitos evidenciam-se a materialidade de questões como distinção e exploração de uma classe sobre outra, além de posicionamentos políticos que nos contam bastante sobre as posições sociais de cada um deles.
Sem dúvidas o mais novo livro de Jessé Souza insere-se em uma linhagem de seus últimos trabalhos que, ao interrogar um objeto bastante delimitado, analisa concomitantemente o Brasil, as narrativas sobre sua singularidade, seu povo e, sobretudo, as especificidades que processos sociais amplos resultantes da Modernidade e da modernização ganham neste país, cujas marcas da escravidão, do ódio de classe, da distinção social e da desigualdade vêm perdurando ao longo do tempo.
Em que pesem as críticas que podem ser tecidas ao fio argumentativo que o autor empreendeu —dentre as quais destacam-se naturalmente alguns contrapontos que vêm sendo feitos ao seu pensamento, seja sobre a sua visão a respeito do uso de Max Weber na sociologia brasileira (Mata 2018), seja sobre a crítica a autores clássicos sem a devida reconstrução de seus contextos de produção (Amorim 2018), seja ainda pela noção de “racismo de classe” —, o presente livro assume um caráter esclarecedor acerca da classe média brasileira e de suas relações com as demais classes sociais. Jessé Souza nos apresenta, portanto, o resultado de um exercício intelectual que correlaciona aspectos históricos e de gênese com a compreensão da construção de uma moralidade própria e justificadora da dominação e exploração social. Além disso, ao tomarmos sua produção recente em conjunto, é possível apontar a preocupação deste professor/pesquisador com o aprofundamento do debate já clássico no pensamento social brasileiro sobre a caracterização das diferentes classes e frações de classe no Brasil contemporâneo.
Por fim, há que se apontar o fato de Jessé Souza ter figurado nas listas nacionais de livros mais vendidos com algumas de suas últimas obras, isso porque este fato nos revela dois elementos fundamentais, a saber: primeiro, o esforço que este autor tem realizado no sentido de publicar obras sociológicas com linguagem acessível a todos os tipos de públicos (acadêmicos ou não) tem demonstrado envergadura e, neste sentido, A classe média no espelho se coloca como herdeira desta reconceptualização do pensamento científico para o grande público; e, segundo, o significado de se ter um sociólogo entre os mais vendidos em um país repleto de problemas no que tange ao consumo de bens culturais pode ser indicativo de uma recolocação do intelectual como figura pública com voz e alcance nacional.
Camila Ferreira da Silva
ferreira.camilasilva@gmail.com
Rodrigo de Macedo Lopes
rlopes9@gmail.com
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